- Author, Jorge Felix*
- Role, The Conversation Brasil
Qual a relação entre o envelhecimento da população e as mudanças climáticas, os dois fenômenos humanos e ambientais mais impactantes do século 21 até aqui?
Nos últimos dias, uma grande parte do Brasil sofreu com um frio acentuado, e as mortes de pessoas em situação de rua por hipotermia causam indignação e desassossego. Sempre que ocorrem essas ondas de frio acentuado, é comum ouvir manifestações de pessoas descrentes no aquecimento global. É fácil cruzar com alguém questionando: “Não dizem que o planeta está esquentando? Cadê?”.
A onda de frio, no fim de agosto, chegou ao mesmo tempo em que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou os dados sobre o envelhecimento da população a partir das projeções do Censo 2022.
A população brasileira está envelhecendo porque a taxa de fecundidade alcançou um nível europeu, isto é, 1,5 filho por mulher (contra 6,3 na década de 1960, e 2,32 no ano 2000). E a expectativa de vida média cresceu para 76,4 anos (contra 71,1 no ano 2000).
Como a demografia está longe de se estabelecer como um determinismo e embora o avanço da Medicina seja infinito e possa proporcionar uma vida cada vez mais longa, sempre fica a pergunta sobre o que pode ameaçar a longevidade humana.
Será que essa longevidade pode se constituir promissora diante da mudança climática? Afinal, o risco maior é uma morte por frio extremo e suas consequências, ou pelo calor exacerbado?
Efeitos diretos do calor sobre a longevidade
Um estudo de modelagem feito pela equipe de pesquisadores do Centro de Pesquisa da Comissão Europeia, liderada por David García-Léon, e recém publicado no journal The Lancet Public Health, analisou as consequências da mudança climática para a longevidade em 1.368 regiões de 30 países europeus. Foram observadas as características epidemiológicas e socioeconômicas.
A pesquisa usou dados de 854 cidades europeias e é a primeira a estimar mortes atuais e futuras por temperaturas altas e baixas neste nível de detalhe regional para todo o continente.
As mortes por calor podem triplicar na Europa até 2100, concluem os autores e autoras.
O trabalho sugere que as disparidades regionais existentes no risco de morte por temperaturas altas e baixas entre adultos aumentarão no futuro devido às mudanças climáticas e ao envelhecimento da população.
As mortes por calor aumentarão em todas as partes da Europa, mais significativamente nas regiões do sul. As áreas mais afetadas incluirão Espanha, Itália, Grécia e partes da França.
No geral, com um aquecimento global de 3°C – uma estimativa superior com base nas políticas climáticas atuais – o número de mortes relacionadas ao calor na Europa pode aumentar de 43.729 para 128.809 até o final do século.
No mesmo cenário, as mortes atribuídas ao frio – atualmente muito maiores do que ao calor – permaneceriam altas, com uma ligeira diminuição de 363.809 para 333.703 até 2100.
Estimativas de mortes atuais e futuras relacionadas à temperatura foram produzidas para quatro níveis de aquecimento global (1,5 °C, 2 °C, 3 °C e 4 °C) usando uma combinação de 11 modelos climáticos diferentes.
No calor ou no frio, mais pobres e mais velhos são mais afetados
Sempre de acordo com o estudo, atualmente cerca de oito vezes mais pessoas morrem de frio na Europa do que de calor, mas a previsão é que essa proporção diminua bastante até o final do século.
Os autores dizem que as descobertas podem orientar o desenvolvimento de políticas para proteger as áreas e pessoas mais vulnerabilizadas dos efeitos das temperaturas quentes e frias.
Como sabemos, os efeitos climáticos extremos têm atingido principalmente os mais pobres e, em relação ao recorte de idade, os mais velhos.
A maioria das mortes por calor ou frio intensos, de acordo com a pesquisa, ocorrerá entre pessoas com mais de 85 anos.
As pessoas mais idosas (com 80 anos ou mais), sobretudo com dificuldade de mobilidade ou vulnerabilizadas financeiramente, têm maior dificuldade de buscar proteção ou fuga de inundações, furacões, frio ou calor.
A questão da análise por idade, no entanto, é uma das limitações da pesquisa apontada pelos autores e autoras porque foi impossível analisar os bebês – assim como estabelecer recortes de gênero e etnia. Outra limitação é que o estudo foi feito apenas na área urbana, onde ocorre mais estresse de temperaturas.
Mesmo assim, o trabalho, pela sua abrangência, oferece evidências potentes para outros países, talvez para todo o planeta. Os estudos buscando a intersecção entre envelhecimento da população e mudanças climáticas têm se constituído em um campo profícuo de estudo.
No Brasil, por ser um país continental, essa linha de pesquisa é urgente. Em meu livro Viver muito (ed. Leya, 2010), alertei para o risco de se repetir no Brasil as consequências da “canicule” francesa de 2003, quando pessoas idosas foram encontradas mortas, já em estado de decomposição, sozinhas em suas casas por falta de um serviço de cuidado em domicílio.
Impactos do clima extremo no Brasil
O Brasil tem um agravante para as ondas de frio ou calor: o grande número de casas de autoconstrução ou mesmo a ausência de adaptação de residências para os extremos climáticos.
Pesquisas apontam que 85% da população brasileira que já construiu ou reformou o fez por conta própria, sem o apoio de arquitetos ou engenheiros. Salvar vidas dos picos de calor e frio dependerá muito mais do que simples ventiladores ou cobertores cobrados a crédito. As favelas são ricas em materiais inadequados, como telhas de zinco, que aquecem ainda mais o espaço interior.
Há mais de uma década, pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) alertaram para as consequências da transição demográfica e da transição climática.
José Féres defendeu, em capítulo de livro publicado em 2014, que na discussão sobre a degradação climática o tamanho da população pesa menos do que a estrutura etária, a composição familiar e seus arranjos e o processo de urbanização, pois esses componentes afetam o padrão de consumo (sobretudo de energia) e as condições de prevenção aos eventos extremos.
Sobre as mudanças de padrão de consumo de uma população superenvelhecida e seus efeitos no meio ambiente, no mesmo livro Camilo de Moraes Bassi, também do Ipea, analisa o efeito das mudanças na estrutura etária brasileira na capacidade de sustentabilidade a partir das metodologias da pegada ecológica e da pegada hídrica.
Bassi concluiu que o envelhecimento populacional pode significar uma “poupança ecológica” devido ao padrão de consumo de alimentação dos idosos ser menos intensivo em bens naturais (terra e água).
Como podemos perceber, o envelhecimento populacional é também fonte de geração de oportunidades e riqueza. No entanto, uma sociedade só estará apta a garantir o bem-estar na velhice com políticas de prevenção que se tornam ainda mais complexas com a intersecção com as mudanças climáticas e exigem uma Política Nacional de Cuidado compatível ao contexto ambiental e epidemiológico, principalmente sob os efeitos prolongados da covid-19 e ameaças de novas pandemias.
No Brasil, é sempre bom repetir, a necessidade se faz maior devido às desigualdades sociais abissais. Todas essas pesquisas apontam apenas para a necessidade de novas investigações nessa área da demografia ecológica. Só assim poderemos evitar mortes e garantir a promessa da longevidade humana.
*Jorge Felix é presidente do Conselho Administrativo do The Conversation Brasil e Professor de Pós-Graduação em Gerontologia da Universidade de São Paulo (USP).