Crédito, Basílica de São Francisco / Divulgação

Legenda da foto,

Presépio de areia realizado em Assis em 2023

  • Author, Edison Veiga
  • Role, De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil

Naqueles tempos medievais de maioria iletrada e parcos recursos visuais, não devia ser nada fácil para os religiosos transformar as narrativas bíblicas em histórias com apelo popular.

Foi assim, conforme a historiografia, a tradição e, em seguida, umas boas camadas lendárias, que um frade que vivia na cidade de Assis, na Úmbria, Itália, teve uma ideia que depois se tornaria um costume natalino: montar um presépio.

Seu nome era Francisco e ele entraria para a história como São Francisco de Assis (1181-1226). E, conforme os registros históricos, a primeira montagem do tipo foi feita há exatos 800 anos, para a celebração do Natal de 1223.

Dois relatos antigos atestam essa história. O primeiro é de Tomás de Celano (1200-1265), frade que conviveu com Francisco e é considerado seu primeiro biógrafo. Na obra ‘Prima Vita’, ele descreveu essa montagem.

Tudo começou com uma viagem empreendida, pouco tempo tempos antes, por Francisco até a Terra Santa. Ele voltou de lá muito impactado com o que viu e com as visitas aos locais onde Jesus teria vivido. Achou que Greccio, pequena cidade a 70 km de Assis, era muito semelhante a Belém e decidiu recriar ali o relato bíblico do Natal.

Zeloso, primeiro pediu autorização ao papa. Não teve dificuldades – Honório 3º (1148-1227) concedeu o aval. Pediu ajuda a um nobre da região, chamado João di Greccio – que antes era um soldado de milícias e depois teria abandonado as armas por uma vida de paz. Tudo foi planejado a tempo da celebração especial.

“Preparam-se o presépio, traz-se a palha, conduzem-se o boi e o burro. Honra-se ali a simplicidade, exalta-se a pobreza, elogia-se a humildade, e Greccio transforma-se quase em uma nova Belém”, escreveu Celano.

Havia antecedentes. No período medieval, algumas representações cênicas de textos sagrados podiam ser utilizados como parte das liturgias, de forma a passar melhor a mensagem aos fiéis.

“Na realidade, os monges beneditinos já tinham em seus mosteiros a tradição do presépio, mas não era uma devoção pública ao povo de Deus”, explica à BBC News Brasil o frade franciscano Rafael Normando, da Basílica de São Francisco, em Assis.

“São Francisco foi o primeiro a montar publicamente o presépio fazendo com que todos os cristãos possam viver o Natal em suas casas.”

Estudioso da vida de São Francisco – tema de seu mestrado e de seu doutorado -, o pesquisador Thiago Maerki, associado da Hagiography Society, nos Estados Unidos, acredita que a ideia tenha surgido a partir da “sensibilidade muito aguçada” que tinha o religioso.

“Ele era um homem que se preocupava com as coisas simples, as coisas que passam despercebidas à maioria dos homens”, comenta ele, em conversa com a BBC News Brasil.

“Nesse sentido, São Francisco tinha uma devoção muito grande pelo Natal. Essa representação que hoje chamamos de presépio surgiu no íntimo de um homem extremamente devoto do nascimento de Cristo.”

Curioso notar que a montagem de Francisco não tinha, como se tornaria comum nos presépios posteriores, as figuras de Maria, José e Jesus em forma de bebê.

Sua preocupação foi recriar o cenário, inclusive com animais vivos – o burro e o boi. A manjedoura, onde Jesus teria sido posto logo após o nascimento, se tornou o centro de um altar portátil ali montado para a celebração da missa de Natal – algo bastante incomum à época, quando as missas costumavam ser rezadas exclusivamente nos altares fixos, dentro das igrejas.

“Francisco queria ver com seus próprios olhos como teria sido o nascimento de Jesus. Ele queria tentar reviver essa experiência por meio dos olhos físicos, e não com os olhos que ele chama de ‘do espírito’, que seria uma espécie de visão”, afirma Maerki.

Boaventura da Bagnoregio (1217-1274), na biografia de Francisco chamada de ‘Legenda Maior’, também abordou a história do presépio.

“Os frades se reúnem, a população acorre; a floresta ressoa de vozes, e aquela venerável noite torna-se resplandecente de luzes, solene e sonora de cânticos harmoniosos. O homem de Deus [no caso, Francisco] estava diante da manjedoura, cheio de piedade, banhado em lágrimas, transbordando de alegria, e a solene celebração da missa ocorre sobre a manjedoura, enquanto Francisco entoa o Santo Evangelho”, descreveu.

“Em seguida, ele prega ao povo ao seu redor e fala sobre o nascimento do rei pobre que ele chama de ‘o menino de Belém’. Um cavaleiro virtuoso e sincero, que havia deixado a milícia e desenvolvido uma grande familiaridade com o homem de Deus, João di Greccio, afirmou ter visto, dentro da manjedoura, um lindo bebê adormecido que o bem-aventurado Francisco, abraçando-o com ambos os braços, parecia acordar do sono”, acrescentou.

Foi a partir desse relato que o artista Giotto di Bondone (1267-1337) pintou o afresco ‘Presepe di Greccio’, uma das 28 cenas feitas por ele, sobre a vida de São Francisco, que adornam a basílica erguida em honra ao santo, em Assis.

“Vale lembrar que o presépio produzido por Francisco era, de certa forma, diferente dos que temos hoje. Porque esse foi preparado mesmo com os animais, que estavam ali em volta da palha. Havia os bois, as vaquinhas. E homens com tochas celebrando o nascimento de Jesus”, pontua Maerki. “Não tinha uma imagem de fato de um menino para colocar na manjedoura.”

Aliás, cabe um adendo: o nome presépio não foi uma invenção de Francisco, mas sim uma apropriação posterior de uma palavra que já existia – em italiano, presepe; em latim, praesepium.

Originalmente, significava simplesmente um estábulo para animais. A terminologia acabou adotado para esse tipo de reconstrução cênica porque, segundo os relatos bíblicos, Maria e José não teriam encontrado local para que Jesus nascesse. O menino veio à luz enquanto eles estavam abrigados em um estábulo – daí a manjedoura, a palha, os animais todos.

Teatralidade como recurso

O pesquisador Maerki abordou tanto em seu mestrado quanto em seu doutorado aspectos da teatralidade no método evangelizador de Francisco de Assis. O presépio enquadra-se nesse contexto.

“O que ele fez foi quase um teatro, uma espécie de representação cênica do nascimento de Jesus”, pontua.

“Francisco tendia a teatralizar tudo. As cenas, a forma que ele encontrava, seus gestos, sua expressão corporal. Ele acreditava que a representação teatral era muito forte no poder de convencimento, no ensinamento, na catequese”, explica.

Para Maerki, “no bom sentido, toda ação de Francisco, no fundo, é uma ação teatral”.

“O povo mais simples da Idade Média era um povo que acreditava muito mais nas imagens do que nas palavras. E Francisco sempre buscou levar o evangelho para as pessoas mais simples”, diz.

Professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, o teólogo e historiador Gerson Leite de Moraes lembra que “numa sociedade medieval em que a escrita não estava ao acesso da maioria da população, tudo o que se pudesse fazer para reforçar a mensagem por meio de imagens, de símbolos, era utilizado”.

“Por trás da ideia do presépio, se tem exatamente o objetivo de ensinar, de maneira didática, como Jesus teria nascido”, diz ele, à BBC News Brasil.

Crédito, Basílica de São Francisco / Divulgação

Legenda da foto,

Detalhe de presépio de areia realizado em Assis em 2023

Simbologias

“É um símbolo muito poderoso”, analisa Moraes. “Toda vez que você olha para um presépio, você é automaticamente cativado a pensar em um ambiente de esperança, de paz. Independentemente da fé da pessoa.”

“Acho que a força vem daí, dos elementos que provocam reflexões. Por isso é algo que virou um clássico e se perpetua no tempo”, acrescenta o teólogo.

Maerki identifica uma coerência entre a concepção do presépio e a mensagem principal de Francisco de Assis: a ideia da pobreza.

“A experiência que ele teve do Natal é muito ligada à pobreza, que é o cerne, o centro da espiritualidade franciscana”, comenta.

“Ele conseguia perceber essa pobreza justamente no nascimento de Cristo, essa experiência de Maria e José em busca de um local para que o filho pudesse nascer em segurança. E foi em uma manjedoura, em um cenário de pobreza extrema, que ele nasceu.”

Nesse sentido, o presépio representa um antagonismo que está na raiz do cristianismo: a imagem de um Deus que, paradoxalmente, nasce como o mais pobre dos homens.

O frade Rafael Normando concorda com a explicação. “O presépio, para nós franciscanos, é reviver um dos momentos mais importantes da cristandade: o nascimento de Jesus. E o mais significativo é relembrar em que condições nasceu Jesus, um lugar totalmente inadequado para o nascimento de uma criança”, afirma.

“A reflexão que precisamos fazer é que Jesus quer nascer em nossos corações de modo especial nas realidades mais complexas da humanidade. O presépio é sinal de empatia, acolhimento e simplicidade”, destaca ele.

Professor na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, e vice-diretor no Lay Centre, também de Roma, o vaticanista Filipe Domingues argumenta que a ideia do presépio se difundiu como tradição pelo mundo na mesma esteira “da reforma espiritual e moral que São Francisco propôs para a Igreja”.

“Tem um valor interessante se pensarmos que o presépio representa um Deus que nasceu pobre. Nasceu humano: provavelmente o cristianismo é a única religião dentre as grandes em que Deus se encarna numa pessoa humana. E ele fez isso em um contexto de pobreza”, contextualiza ele, à BBC News Brasil.

“Essa representação é coerente, por uma leitura espiritual do que representa”, diz Domingues. “A mensagem de São Francisco consiste em botar essa pobreza e a simplicidade no centro da atenção.”

Atualmente, o Vaticano incentiva a montagem de presépios. “Virou uma tradição em diversos lugares. E a Igreja vê isso como uma resposta ao que o Natal se tornou, uma festa muito comercial e de consumo excessivo, instrumentalizado pela sociedade como festa de consumo. O presépio é uma proposta de voltar à origem do Natal, representar o nascimento para ter o sentido da festa no centro da casa”, ressalta Domingues.

Para o frade Normando, mesmo as releituras artísticas contemporâneas do presépio, ainda que feitas com fins artísticos e não religiosos, também são bem-vindas.

“Não acredito que a arte possa prejudicar ou ofuscar o significado do presépio”, avalia. “Muito pelo contrário: manifesta o nascimento de Cristo adaptado à vida concreta do povo, em suas culturas, trazendo uma contribuição muito grande. Deus se adapta aos seus filhos.”

Maerki atenta para a frase do biógrafo Celano, que mencionou que Greccio se transformou “quase em uma nova Belém”.

“Isso é de uma expressividade tamanha. Porque é como se a representação do Natal tivesse o poder de trazer aquele acontecimento de novo na história, como se aqueles ali naquela celebração conseguissem presenciar e vivenciar novamente o nascimento de Cristo”, diz.

Crédito, Edison Veiga

Legenda da foto,

Presépio de Bled, Eslovênia

Em Assis

Os frades que seguem o legado de São Francisco mantêm viva a tradição do presépio na cidade de Assis. Segundo Normando, todos os anos a instalação é realizada com a colaboração de “funcionários da basílica para montar a estrutura” e “artistas que depois irão produzir o presépio propriamente dito”. No total, é um trabalho que costuma envolver cerca de 15 pessoas.

A cada edição, um presépio diferente é montado. “Uma forma de prestigiar vários artistas e também oferecer aos peregrinos que chegam à cidade um presente, desejando a todos um feliz Natal”, explica o frade.

Na edição de 2023, que marca o 800º aniversário da concepção original, artistas do Canadá, da Rússia e da Holanda se encarregaram de criar uma instalação de 8 metros de comprimento e 4 de largura. “Foi feito com areia prensada e, depois de moldar os personagens do presépio, eles passaram um produto com água e cola para fixar a areia”, conta Normando.

Crédito, Domínio Público

Legenda da foto,

Afresco de Giotto, baseado na narrativa sobre o presépio de São Francisco

Outros cristianismos

Para os cristãos não-católicos, a questão da representação do presépio não é tão bem-resolvida, atualmente. Segundo Moraes, antes não parecia haver problema, ao menos para as igrejas protestantes históricas. Mas o cenário mudou.

“Entendia-se que a imagem do presépio, pontual e não utilizada durante o ano todo, nunca suscitou o elemento da adoração. Assim, mesmo obcecadas com a questão da idolatria, da iconoclastia, as igrejas protestantes de maneira geral não tinham problemas com o presépio. Viam como apenas uma remontagem de uma cena bíblica”, afirma o teólogo.

Porém, o advento do fundamentalismo, “principalmente ao longo do século 20”, trouxe um novo ranço. “Trouxe embaraços até mesmo para a tradição natalina”, diz. “Hoje você vai encontrar igrejas protestantes com dificuldades para montar uma árvore de Natal, sempre tem alguém que implica”, opina.

Ele conta que mesmo soluções muito utilizadas, no passado, por protestantes – substituir a imagem do Menino Jesus por uma estrela, por exemplo – já estão sendo malvistas por alguns setores.