- Author, Thomas Bird
- Role, BBC Travel
A ferrovia Qinghai-Tibet estende-se por quase 2 mil quilômetros. Ela atravessa o planalto tibetano, de Xining – a capital da província de Qinghai, na China central – até Lhasa, no Tibet.
É uma viagem épica, mas, da janela do trem, pode-se observar poucas intervenções humanas.
A paisagem é composta principalmente pela grama amarelada da savana do teto do mundo, que se estende até o horizonte com aparência de dentes de crocodilo, nas montanhas mais altas do planeta.
Se o trem quebrasse, poucos passageiros durariam por muito tempo naquelas terras altas varridas pelos ventos. Não parece haver poços de água para beber, nem árvores para oferecer sombra.
Quando algo aparecia ao longe na visão, era invariavelmente um esqueleto: a carcaça de um iaque comido pelos predadores ou instalações militares do tempo de Mao Tsé-Tung (1893-1976), que parecem ruínas de guerra.
As próprias bandeiras de prece tibetanas foram arrancadas e panos de algodão foram fixados às rochas, simbolizando a rendição dos homens.
Meu pensamento se dirigia aos antigos aventureiros de outros países, que foram os primeiros a tentar chegar a Lhasa, a Cidade Proibida original.
Um deles foi o excêntrico inglês Thomas Manning (1772-1840). “Perseguido pela ideia da China”, ele viajou de navio de Guangzhou (também chamada de Cantão, no sul da China) até Calcutá, na Índia, no início de 1811.
Dali, na companhia de um católico chinês de nome Zhao, ele cruzou a fronteira entre o Butão e o Tibet sem dificuldades. E, depois de meses de uma árdua viagem, ele se tornou o primeiro inglês a pôr os pés na capital sagrada do Tibet.
Para Manning, Lhasa parecia uma cidade pobre e suja. Mesmo assim, ele conseguiu uma audiência com o 9º Dalai Lama, na época com seis anos de idade (o Dalai Lama atual, Tenzin Gyatso, é o 14º).
Mais tarde, Manning foi preso pelo amban – a autoridade que governava o Tibet em nome do governo chinês. O inglês permaneceu prisioneiro até que o imperador Jiaqing ordenou que ele fosse acorrentado, escoltado até a fronteira e deportado.
Nas décadas que se seguiram, o litoral da China foi invadido por agressivos comerciantes estrangeiros, com guerras marítimas e tratados unilaterais.
Mas diversos tipos de aventureiros – cartógrafos, montanhistas, missionários, garimpeiros e escritores de viagem – ainda sonhavam em se infiltrar na mística fortaleza no “teto do mundo”.
Eles chegavam de todas as direções. Suas motivações eram diferentes, mas as adversidades eram sempre as mesmas. Lobos, terremotos e a varíola assombravam um país que continuava literalmente fora do mapa.
O Tibet era habitado por reis que eram deuses, monges despóticos, guardas de fronteira intransigentes e bandidos armados.
Muitas pessoas morreram nas tentativas de chegar a Lhasa após a viagem de Manning.
O Império Britânico acabaria trazendo a capital tibetana para o cenário mundial, ao ordenar que a Comissão da Fronteira com o Tibet atravessasse os limites da Índia (que fazia parte do império, na época) para solucionar questões comerciais existentes entre o Reino Unido e o Tibet.
A Comissão era uma unidade militar liderada pelo oficial Francis Younghusband (1863-1942). Nascido na Índia, ele tinha um objetivo vago a cumprir: atingir a “satisfação” para o império.
Younghusband atingiu essa satisfação com a Batalha (ou o massacre, segundo alguns) de Guru.
Os tibetanos se lançaram de sua obscura fortaleza, armados com mosquetes envelhecidos e imagens do Dalai Lama, que eles acreditavam que os protegeriam. Eles não eram páreo para as espingardas inglesas Enfield e metralhadoras Maxim, que conseguiam disparar centenas de balas por minuto.
Suas fileiras foram brutalmente abatidas depois que, acidentalmente, um atirador deu início ao ataque britânico, ao disparar sua arma. E os sobreviventes simplesmente fugiram, incapazes de compreender o que haviam acabado de presenciar.
É preciso dar aos soldados britânicos o crédito de terem resgatado os tibetanos abatidos.
Em seguida, eles avançaram para Lhasa, em meio a diversos conflitos pelo caminho. Um deles foi a batalha da Passagem de Karo La, considerada o combate travado à maior altitude da história.
Assim, os britânicos acabaram chegando à Cidade Sagrada. O Dalai Lama havia se refugiado na Mongólia, mas eles conseguiram o que queriam: um novo tratado com o Tibet, que foi assinado em 1904.
Os chineses e a ferrovia
O legado da invasão britânica transformaria a posição da China em relação ao Tibet. Os chineses não poderiam mais considerar a região como um protetorado com pouco controle.
Ao longo das caóticas décadas após o colapso da dinastia Qing, em 1912, o Tibet, na prática, foi independente. Mas, em 1950, veio a invasão do Exército Vermelho da China para “liberá-lo” da “servidão”.
Os tibetanos ficaram sem a autonomia desejada e muitos deles, incluindo o Dalai Lama, fugiram para o exterior em um exílio voluntário.
Em 1984, foi concluída a construção do primeiro trecho da ferrovia. Ela se tornaria um cordão umbilical simbólico, conectando a capital chinesa, Pequim, aos seus caprichosos primos das montanhas. É a ferrovia mais alta já construída no mundo.
O trecho inicial ligava Xining a Golmud, uma cidade no meio do nada na província de Qinghai. O local rapidamente se tornou um ponto de escala para uma geração de hippies em direção a Lhasa.
O escritor de viagens americano Paul Theroux viajou nessa linha em meados dos anos 1980. Na época, o trem era movido a vapor e a viagem levava 30 horas. Na época da minha viagem, em 2018, o trajeto levava apenas sete horas.
“Era um trem horrível”, escreveu Theroux no seu diário de viagem Riding the Iron Rooster (Viajando de Trem Através da China, Ed. L&PM, 1995). Ele relata um confronto físico entre os passageiros e conta que o trem “ficou sem água uma hora depois de sair”.
Lendo esse relato, eu me senti um pouco mimado no meu apertado beliche de segunda classe em um vagão equipado com bicos de sopro no teto para regular os níveis de oxigênio e evitar o mal de altitude entre os passageiros.
No final de cada vagão, havia também um cilindro de água fervente para reabastecer minha garrafa de chá, se fosse preciso.
“O mundo mudou”, escrevi no meu diário, “mas o deserto de Qinghai continua o mesmo.”
Ler os últimos capítulos do livro de Theroux enquanto me aproximava da remota cidade de Golmud era como receber comentários em tempo real sobre o cenário que passava pela janela.
“Aldeias quadradas e muradas que pareciam habitações remanescentes da idade neolítica” se espalhavam por um planalto de pedras “infernal e memorável”, enquanto nos aprofundávamos ainda mais no “terreno mais acidentado que já vi na China…”
Mas a descrição de Golmud apresentada por Theroux – “uma dúzia de construções baixas espalhadas por um amplo terreno” – não representa mais a realidade. A moderna cidade de Golmud parecia tão nova e limpa como se tivesse sido transplantada de helicóptero de uma fábrica de cidades-modelo para o planalto tibetano.
Não pude deixar de sentir que suas alamedas frondosas, de alguma forma, desrespeitavam as leis terrenas – que aquele planalto de rochas e esqueletos não era lugar para um assentamento semipróspero, claramente de classe média.
Passei uma noite em Golmud. Na tarde seguinte, embarquei novamente no chamado “Trem do Céu”, ou “Ferrovia para o Céu”, em direção a Lhasa.
Rumo ao ‘Terceiro Polo’
Durante a cerimônia de inauguração na estação de Golmud em 2006, que abriu o ramal para Lhasa, o então presidente chinês Hu Jintao descreveu o segundo trecho da ferrovia como “uma magnífica proeza da história da construção de ferrovias da China” e “um milagre da história mundial das ferrovias”.
Em que pese o flagrante nacionalismo imbuído no discurso do presidente Hu, os engenheiros chineses realmente atingiram um feito que parecia impossível.
As dificuldades apresentadas pela construção dos 1,2 mil quilômetros restantes através do teto do mundo eram suficientes para fazer qualquer topógrafo sensato interromper o seu trabalho e esquecer de vez aquela ideia absurda de construir a ferrovia.
Para começar, o próprio inverno no planalto era tão tempestuoso que ajudou o Tibet a ganhar o apelido de “Terceiro Polo”.
Em poucas palavras, se você conseguir não ser pulverizado pelo granizo, com pedras de gelo tamanho de bolas de golfe, nem ser atingido pelas rajadas de vento das montanhas, com força suficiente para carregar uma criança pequena, provavelmente irá perder alguns dedos dos pés por congelamento.
Os engenheiros também enfrentaram sérios desafios representados pelo relevo da região.
Sua maior dificuldade foi o permafrost, que cobre 869 mil quilômetros quadrados – a maior região de solo congelado fora dos polos, segundo o livro China’s Great Train (“O grande trem da China”, em tradução livre), do jornalista americano Abrahm Lustgarten.
O permafrost congela no inverno e se torna um terreno pantanoso no verão. Para os engenheiros ferroviários, isso significa que, em um ano típico, o solo pode subir e descer em até 30 cm.
A inconsistência dos padrões de descongelamento exacerba o problema. Algumas regiões ficam solidamente congeladas, enquanto outras ficam mais moles.
E esse relevo imprevisível é ainda agravado pelas mudanças climáticas causadas pela atividade humana, particularmente no planalto tibetano, que vem se aquecendo mais rapidamente do que qualquer outra região da República Popular da China.
Para compensar a profunda incerteza dessas fundações, cerca de 15% do trecho foram construídos sobre pontes, como se a ferrovia atravessasse água corrente.
Mas, mesmo com toda essa infraestrutura, a região ainda é a maior zona de colisão de placas continentais do planeta. E a possibilidade de um imenso terremoto precisa ser considerada.
Foi por isso que, enquanto meu trem chegava à estação, não pude deixar de sentir certo desapontamento pela natureza rotineira da operação.
O segundo trecho
Enquanto eu embarcava, percebi que o interior do vagão era decorado com tapetes tibetanos e as paredes eram adornadas com motivos tradicionais budistas.
“Nǐ hǎo” – “olá”, dizia eu, em chinês, tentando me apresentar para os tibetanos no vagão do trem. Mas eles soltavam apenas uma risadinha.
Depois de encontrar um assento junto à janela, eu me empoleirei ao lado da mesa para continuar minha leitura de Viajando de Trem Através da China. Apesar do título, Theroux narra a conclusão da viagem de Golmud até Lhasa de carro, antes da construção deste trecho da ferrovia.
Seria um episódio hilariante, se não fosse tão cansativo. A viagem de carro por dois dias foi infernal, na companhia da srta. Sun com suas queixas constantes e do incompetente motorista sr. Yu, que sofreu mal de altitude e bateu o carro.
As brilhantes observações de Theroux não resistiram aos anos que se passaram. Ele escreveu que “a principal razão pela qual o Tibet é tão pouco desenvolvido e não chinês – e, por isso, completamente antiquado e agradável – é que é um grande lugar da China aonde a ferrovia não chegou”.
E ele ainda destacou outra observação, que o futuro se encarregaria de desmentir: “a cordilheira de Kun Lun é uma garantia de que a ferrovia nunca irá chegar até Lhasa”.
Por quê?
Fora do trem, os grandes planaltos de tundra e permafrost varridos pelo vento gradualmente desapareciam com o entardecer.
Dormi cedo e sem jantar. Em algum momento durante a noite, cruzamos a passagem de Tanggula, que marca o ponto ferroviário mais alto do mundo, com 5.702 metros de altitude.
Na manhã seguinte, fui despertado por um alegre anúncio sobre a construção da ferrovia:
“A temperatura frequentemente cai para -20 °C à noite”, disse uma mulher em inglês robótico. “Por isso, é fácil contrair um resfriado durante a ida ao toalete. Para resolver o problema, a companhia ferroviária instalou toaletes com aquecedores elétricos no seu interior.”
Os chineses são tão orgulhosos pelo Trem do Céu quanto pela Grande Muralha e pela Barragem de Três Gargantas. Mas, quando olhamos os vastos espaços vazios pela janela, surge uma questão pertinente: por quê?
Talvez seja apenas parte da sua história de orgulho por sempre construir “o maior” de tudo. Afinal, da mesma forma que a Muralha foi facilmente invadida pela cavalaria da Manchúria e a represa de Três Gargantas submergiu milhões de casas, as razões da construção da ferrovia foram, pelo menos, duvidosas.
Oficialmente, a ideia chinesa da Marcha para o Oeste – a política que pretendeu incentivar o desenvolvimento econômico de 12 das províncias mais ocidentais do país – foi vendida com base na redução da pobreza.
Quando a ferrovia foi inaugurada, em 2006, ela inicialmente colaborou com essa promessa. Foram 2,5 milhões de visitantes transportados nos primeiros cinco meses de operação, o que expandiu o turismo regional.
Essa expansão levou a um crescimento acima da média nacional e, por sua vez, causou o remodelamento radical de Lhasa, com novos hotéis, ruas pavimentadas e condomínios. Os críticos chamaram a transformação de “Segunda Invasão do Tibet”.
Mas esse boom não durou muito tempo. A Região Autônoma do Tibet continuava sendo o lugar menos desenvolvido da China na época da minha visita.
Questões econômicas à parte, o mais razoável seria considerar o valor estratégico da ferrovia. O jornalista britânico Tim Marshall, autor do livro Prisoners of Geography (“Prisioneiros da geografia”, em tradução livre), coloca a questão friamente em termos geopolíticos: “se a China não controlasse o Tibet, sempre seria possível que a Índia tentasse fazê-lo“.
E existe o papel da ferrovia na construção de um país.
Nações imensas como os Estados Unidos e a Rússia foram forjadas por estradas de ferro, muitas delas construídas por operários chineses. Enquanto isso, na China, o poder de colonização das ferrovias foi sentido quando as potências estrangeiras lançaram trilhos por todo o país no século 19.
Mas, no cenário selvagem que observo pela janela, a geopolítica parece algo distante e muito restrito ao ser humano.
A chegada à ‘Cidade Proibida’
A passagem para Lhasa segue pelo rio Kyi Chu, afluente do rio Yarlung Tsangpo ao norte. Ele flui através de um frágil vale ladeado por negros picos recortados, com extremidades que perfuram as nuvens de algodão.
Percebi que aquela era uma verdadeira “fortaleza de pedra”, que ajudava a explicar por que esta foi, sem dúvida, a última cidade medieval a se render à modernidade.
As razões do fascínio por Lhasa para qualquer viajante do mundo que se preze são evidentes: sua localização remota, sua peculiaridade e seu isolamento, mesmo com as forças da globalização e da assimilação chinesa.
Lhasa fica a 3,7 mil quilômetros de Pequim e 284 km da capital estrangeira mais próxima – Timfu, no Butão. Mesmo com o trem, a cidade ainda parece ser o lugar mais distante para se chegar de qualquer parte do mundo.
Finalmente, desci do trem me sentindo, ao mesmo tempo, exausto e revigorado.
Mas, antes que eu tivesse tempo para respirar mais profundamente o ar tibetano, um segurança me apontou uma grande tenda branca, onde todos os visitantes estrangeiros precisam registrar sua chegada. Depois de alguns longos minutos, um carimbo vermelho e uma assinatura indicavam que eu estava liberado.
Mas as normas exigem que você reserve um tour com uma companhia de viagens registrada, de forma que a liberdade em Lhasa dura apenas o tempo de atravessar o hall de entrada da estação ferroviária.
Um alegre cidadão tibetano, segurando um cartaz com o logo da companhia de viagens, perguntou: “Você é o sr. Bird, Thomas?”
“Sim, sou eu.”
“Bem-vindo a Lhasa.”
Ele coloca um cachecol de seda branca em torno do meu pescoço – o tradicional sinal de boas-vindas do Tibet – e me conduz a bordo de um micro-ônibus repleto de estrangeiros com olhares estranhos. Conversamos rapidamente enquanto nos dirigimos a Barkhor, o centro histórico de Lhasa.
E descubro que sou o único do ônibus que não chegou a Lhasa de avião.