- Author, Leandro Prazeres, João da Mata e Vinicius Lemos*
- Role, Enviados da BBC News Brasil a Porto Alegre, e da BBC News Brasil em São Paulo
“Só peguei meus remédios e documentos. Perdi tudo”.
É assim que Nadir Fernandes, de 78 anos, conta como foram os acelerados minutos que antecederam o seu resgate.
Ela era moradora do bairro Navegantes, um dos mais atingidos pelas inundações em Porto Alegre. Teve de ser retirada de casa com o uso de um trator.
Em meio à tensão da operação para retirá-la de casa, a pá mecânica do veículo machucou as pernas da aposentada que, agora, não consegue mais caminhar.
A preocupação de Nadir com os remédios e a dificuldade em se locomover ilustram um lado pouco observado deste que é o maior desastre climático da história do Rio Grande do Sul: o impacto das inundações sobre a população idosa.
O Rio Grande do Sul é o Estado com maior proporção de idosos: 14,1% dos moradores têm 65 anos ou mais, segundo o Censo de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O Rio de Janeiro ocupa a segunda posição, com 13,1% da população.
Sobre os resgates de idosos, autoridades do Rio Grande do Sul dizem que não há público específico nos salvamentos e que a prioridade é resgatar todos aqueles que estão em áreas de risco e que precisam de auxílio.
“Independente da comorbidade, o resgate é realizado dentro da técnica, da maneira mais ágil possível”, diz nota do Corpo de Bombeiros do Rio Grande do Sul.
Até a manhã de segunda-feira (20/5), foram confirmadas as mortes de 157 pessoas — além disso, 88 ainda estão desaparecidas.
A estimativa da Defesa Civil gaúcha é de que há cerca de 76 mil pessoas em abrigos e o total de afetados, em 463 municípios, é de 2,3 milhões de pessoas.
Um levantamento feito por entidades do Rio Grande do Sul, como a Universidade Lasalle e a Cruz Vermelha, estima que ao menos 202,5 mil idosos do Estado sofreram algum tipo de impacto com as chuvas dos últimos dias.
Informações pontuais sobre mortes nas fortes chuvas mostram idosos entre esses números. No entanto, a Defesa Civil diz que não apurou especificamente as idades das vítimas até o momento.
Uma psicóloga ouvida pela BBC News Brasil que atua em uma das centenas de abrigos espalhados pelo Estado afirma que falta estrutura adequada, tanto física quanto de recursos humanos, para lidar com os idosos em meio a esta crise.
Segundo ela, a maioria dos idosos resgatados e enviados a abrigos relatam problemas semelhantes: dificuldades de locomoção, baixa renda, solidão e doenças crônicas.
Procurado, o governo do Rio Grande do Sul disse que atua em conjunto com os municípios, incluindo uma parceira com a prefeitura de Porto Alegre.
À BBC News Brasil, a prefeitura de Porto Alegre informou que um primeiro abrigo destino exclusivamente ao público idoso foi aberto na sexta-feira (17/5).
Cuidado no resgate
O drama das inundações sobre os idosos fica evidente nas ações de resgate.
Voluntários ouvidos pela reportagem contaram sobre os cuidados necessários com as pessoas com mobilidade mais frágil.
“Eles têm dificuldades para subir nos botes, porque têm a força reduzida”, diz o médico Daniel Che Barbosa Paiva, que está atuando como voluntário nos resgates.
Não é incomum, segundo os voluntários, que necessitem de aparato especial para serem resgatados, como o uso de pranchas de resgate.
“É preciso muito mais cuidado na retirada deles”, diz o enfermeiro voluntário Alan Domiciano.
Outro ponto que chama a atenção dos voluntários é que alguns desses idosos não querem sair de suas residências, ainda que haja alertas do poder público para deixarem o local.
“Quem não saiu de casa é porque está resistente, mesmo com as chuvas. A pessoa pode querer ficar ali para proteger a casa, por medo de alguém invadir. Mas também é preciso entender a cabeça de um idoso que não quer sair da própria casa para ficar em um abrigo em que não conhece ninguém”, diz Domiciano.
Entre as dificuldades, há os problemas crônicos de saúde dos idosos, como hipertensão e diabetes.
Isso leva a um cuidado extra, durante e após o resgate, principalmente em relação às medicações — já que alguns podem ter perdido seus remédios em meio às enchentes.
’50 anos morando no mesmo lugar’
Um colchão sobre o chão frio de um ginásio esportivo é a coisa mais parecida com uma casa que Nadir Fernandes tinha na tarde da última quarta-feira (15/05), quando conversou com a reportagem da BBC News Brasil.
Seus poucos pertences estavam amontoados ao redor do colchão onde ela passa o dia sentada ou deitada, já que não consegue mais caminhar sem a ajuda de voluntários.
Envolta em mantas para espantar o frio do início de inverno gaúcho, Nadir se emociona ao falar do seu resgate.
“Nunca que eu sonhei que a água fosse lá em casa. Eu me criei ali. Quase 50 anos morando no mesmo lugar e a água nunca tinha estado lá. Quando eu vi, a água estava me matando dentro de casa. Aí tiveram que me tirar de casa com uma patrola [trator]. Me machuquei e fiquei toda roxa”, lembrou. “Estou muito triste, moço.”
O tom emocionado também está presente no relato de Paulo Roberto Gonçalves, de 70 anos.
O aposentado vivia em uma casa na Vila Farrapos, área do bairro de mesmo nome às margens do lago Guaíba.
A região foi uma das que mais sofreram com as inundações na capital gaúcha.
Ele conta que relutou em acreditar que a água o obrigaria a sair do sobrado de dois pisos.
Com os meios que tinha, lutou contra a subida da água.
“Na minha casa foi assim: veio aquela imensidão de água que não te avisa. Vai subindo, vai subindo, como se fosse uma fonte que tinha estourado”, contou.
“Eu via a água entrando pelo encanamento do tanque. Eu cheguei a colocar um pano debaixo da porta e disse: ‘A água não vai passar’. Que nada. Quando desci as escadas, a água estava quase no meu joelho, dentro da cozinha”, relatou.
Paulo contou que olhava pela janela e via a água invadindo as ruas, mas decidiu continuar em casa, no segundo andar de seu sobrado.
De tempos em tempos, ia à escada e podia ver os efeitos da inundação em sua residência — mantimentos estragados flutuando, caixa de som completamente submersa.
“Passei quatro dias comendo pão com ovo. Enquanto tinha pão”, contou.
Foi só quando a comida e a luz acabaram que ele decidiu que era hora de tentar comprar mais mantimentos.
“Saí com a água na cintura para comprar uma vela e colocar carga no meu celular. Eu estava me segurando pela casa para ir devagarinho. A água estava na minha cintura. Tenho 1,85m e a água estava pela cintura, fedida e amarela”, disse.
“Quando eu estava na metade do caminho, atravessando a rua, deu uma câimbra nessa perna [aponta para a perna direita]. Como é que eu ia atravessar se a água estava aqui [aponta para a cintura]? Veio uma outra pessoa e eu chamei: ‘Me ajuda a ir ao supermercado’. A perna estava dura. Eu me emocionei um pouco porque se não saísse dali, ia deitar e ia morrer afogado”, conta.
Ao chegar ao mercado, Gonçalves viu o local completamente invadido pelas águas. Ele ainda conseguiu voltar para casa, mas não ficou lá por muito tempo.
O susto com a perna paralisada o convenceu que era hora de ir.
Foi resgatado de bote e levado para um abrigo em uma escola católica no bairro Partenon, na zona leste de Porto Alegre.
Acolhimento e solidão
Nos abrigos improvisados montados às pressas em cidades como Porto Alegre após o auge das inundações, é comum encontrar famílias inteiras quase sempre compostas por casais jovens e crianças. Em meio à tragédia, eles tentam se apoiar como podem.
Mas não é essa a realidade de Nadir Fernandes e Paulo Roberto Gonçalves.
Como muitos dos idosos que a reportagem da BBC News Brasil encontrou nos abrigos da capital gaúcha, eles estavam sozinhos.
“Eu vivo sozinha. Eu tinha minha família toda. Os filhos se casaram, o meu marido faleceu e eu fico sozinha. Só eu e uma neta que morava comigo […] Vim pra cá sozinha. Só eu”, conta Nadir.
Ela disse que, desde que foi resgatada, não teve mais notícias de sua família.
“Não sei onde estão meus parentes, meus filhos”, disse.
O relato de Gonçalves é parecido. Em sua casa, só viviam ele e, como ele diz, “seu amigo de quatro patas”.
“Deixei meu amigo de quatro patas dentro de casa, que é meu gato. Deixei comida pra ele. E falei para ele o que eu sentia naquela hora: ‘O pai vai te deixar comida’. Era um saco de ração que eu rasguei e deixei um bojo d’água. O apego que a gente tem pelos bichos é muito importante […] é uma vidinha que está ali”, contou.
“Ele dava aqueles ‘mius’ [miados] bem ‘micha’ [fracos] que é para mostrar que ele é carinhoso. Fiz um carinho e mostrei a comida para ele e disse: ‘Eu tenho uma coisa pra te dizer. Olha bem pro pai aqui. Tu tem sete vidas. O pai só tem uma, tá?’”, relembrou Gonçalves.
Paulo Roberto diz que chegou a fazer contato com sua família desde que foi resgatado, mas não mencionou por que não está com eles.
Outro problema relatado por voluntários são as doenças crônicas que muitos dos idosos têm e que criam desafios para a permanência deles em abrigos por períodos mais longos.
Paulo Roberto Gonçalves, por exemplo, precisa tomar medicamentos para controlar diabetes.
Nadir Fernandes contou que já teve dois infartos, e também precisa tomar remédios para controlar a pressão.
Francisco Leandro Dutra, de 90 anos, que está no mesmo abrigo de Nadir, precisa de remédios diuréticos todos os dias devido a problemas cardíacos.
Ele contou à BBC News Brasil que precisa ir várias vezes ao banheiro. A tarefa, no entanto, é especialmente difícil durante à noite, quando poucas luzes no ginásio ficam acesas.
Uma alternativa dada pelos voluntários foi uma cuba de plástico improvisada para que ele pudesse urinar no equipamento sem ter que se levantar.
“Fiz uma cirurgia do coração há dois ou três anos e tomo diuréticos. Seguidamente eu tenho que sair pra ir ao banheiro. Eles vieram e me deram um recipiente para não ter que ir ao banheiro.”
‘Parecem deixados de lado’
A psicóloga Clarisse Job, que atua como voluntária no abrigo onde estava Paulo Roberto, disse à BBC News Brasil que o perfil dos idosos afetados pelas inundações é parecido.
“Muitos chegam sozinhos, sem a companhia de familiares, como filhos. Às vezes, os companheiros já faleceram. A gente percebe que eles são um público mais fragilizado emocionalmente porque muitos perderam tudo o que construíram”, disse à BBC News Brasil.
Ela menciona um idoso que chegou ao abrigo onde ela atuava como voluntária e que ajudou a dar a dimensão do drama vivido por esse público. O homem havia sido resgatado e estava dando entrada no abrigo quando foi abordado por ela.
“Quando cheguei para conversar com ele, ele me disse: ‘Estou bem. Estou muito bem. Já perdi a coisa mais importante da minha vida’. Era a esposa dele, que tinha falecido havia um ano mais ou menos”, disse.
A psicóloga disse que muitos chegam aos abrigos precisando de alguém para ouvi-los. “Às vezes, eles precisam desabafar. Precisam ter alguém para escutá-los.”
Segundo ela, o impacto das inundações para o público idoso pode ser diferente do que ocorre com pessoas mais jovens.
“Para muitos, significa perder tudo o que eles construíram, todas as lembranças, as histórias que ficavam representadas nos objetos que eles tinham em casa, nas fotografias, num quadro na parede”, disse a psicóloga à BBC News Brasil.
Isso, em parte, explica o relato de voluntários sobre as dificuldades em convencer idosos a deixarem suas casas.
“Percebi que é mais difícil conversar e convencer os idosos a mudarem de opinião e entenderem que a situação pode piorar, que há mais previsão de chuva e que é melhor deixar a casa. É muito mais fácil convencer os jovens a deixarem o local”, disse o médico Daniel Che Barbosa Paiva.
A psicóloga diz que a velocidade com que as inundações destroem muito daquilo que essas pessoas conheciam como suas vidas cotidianas faz com que eles cheguem aos abrigos “perdidos” e inseguros sobre o futuro.
“Eles estão muito voltados para o presente. Não sabem como vai ser o futuro ou quanto tempo vão ter (de vida). Eles chegam (aos abrigos) muito perdidos, sem aquela referência do passado e, muitas vezes, sem saber como é que vai ser o futuro”, disse a psicóloga.
Clarisse Job disse que não vê, pelo menos até agora, nenhuma política específica adotada pelo poder público para acolher os idosos considerando a especificidade dessa população.
“Não percebo (uma estrutura específica). Não vejo nenhuma política pública voltada para os idosos […] eles parecem meio deixados de lado”, afirmou a psicóloga.
Abrigo exclusivo em Porto Alegre
As informações extraoficiais apontam que há idosos desabrigados e em condição de abrigamento em praticamente todos os municípios afetados pelas chuvas no Rio Grande do Sul.
A maior parte dos abrigos em funcionamento neste momento é composta por instalações voluntárias, como os que receberam Nadir e Paulo Roberto.
Em Porto Alegre, o secretário municipal de Inovação e responsável por uma central que dá suporte aos abrigos localizados na capital gaúcha, Luiz Carlos Pinto, disse que, nos primeiros dias da tragédia, o foco foi oferecer abrigamento a todas as vítimas e não a segmentos específicos.
“Na primeira semana, a gente trabalhou muito para abrigar todo mundo, e só depois é que começamos a fazer alguns abrigos especializados […] Ontem [quinta-feira] é que conseguimos uma instalação [na sexta-feira] para o nosso primeiro abrigo exclusivo para idosos”, afirmou o secretário.
Ele disse que nesse abrigo haverá serviços e voluntários especializados em atuar com o público idoso.
Temor sobre o retorno
Clarisse Job disse que a situação dos idosos em abrigos inspira cuidados, mas que o retorno deles às suas casas após as inundações também precisa de atenção.
Ela explica que, por pior que a experiência do desalojamento possa ser, muitos idosos passaram a ter companhia nos abrigos, saindo da solidão em que alguns viviam anteriormente.
O retorno para casas destruídas em um momento tão difícil pode representar um desafio adicional.
“É um momento que a gente se preocupa mais. Muitas vezes, ao retornar, eles talvez não tenham a companhia de algum profissional ou de um voluntário. Esse pode ser um dos momentos mais delicados”, disse.
Nadir Fernandes diz estar preocupada com o regresso.
“Eu já estava descansando a vida, mas agora isso aconteceu. Não deu certo. Perdi tudo. A assistente social veio aqui e a gente escreveu tudo o que eu perdi: fogão, cama, roupas. Só fiquei com uma saia e umas roupas que ainda me roubaram”, disse.
Sobre o retorno à casa onde vivia, Paulo Roberto Gonçalves disse: “Vai ser uma tristeza”.
Ao mesmo tempo, os dois relatam doses de otimismo.
“Por um lado, eu me sinto muito triste porque não sei onde estão meus parentes, meus filhos. Mas, por outro lado, eu me sinto contente por ter me salvado”, disse Nadir.
Paulo Roberto pensa no seu gato Chico e esboça uma reação positiva.
“A vida é bela para quem sabe curtir. Tu pode ser duro com o próximo, mas tu tem que ter calma contigo mesmo e saber o que se quer da vida. Tem que olhar pra frente”, disse.
*Colaborou Felipe Souza, da BBC News Brasil