A americana Eve Wiley tinha 16 anos quando descobriu, por acaso, que tinha sido concebida por sua mãe com o sêmen de um doador anônimo.
O homem que até então acreditava ser seu pai, Doug, tinha morrido de ataque cardíaco quando ela tinha sete anos.
Animada com a ideia de “voltar a ter um pai”, ela saiu em busca do doador, com quem acabou forjando uma afetuosa relação de pai e filha.
Mas quando o filho dela adoeceu por causa de uma condição genética, ela se viu obrigada a pesquisar a história da família e fazer testes de DNA – que acabaram levando a uma descoberta que a deixou profundamente revoltada, a ponto de se engajar pessoalmente em uma luta para altera a lei em seu Estado natal, o Texas.
Essa história é contada em um episódio da terceira temporada do podcast Que História!, da BBC News Brasil. Ele pode pode ser ouvido nas principais plataformas de podcast, como Spotify e Apple Podcasts, e no canal da BBC News Brasil no YouTube.
‘Havia um segredo na família…só não sabia que ese segredo era eu!’
Eve Wiley nasceu no Texas em 1987, filha de Doug, professor de ensino médio, e Margo, enfermeira, na pequena cidade rural de Center, no Texas.
“Minhas lembranças de Doug são por meio de fotos e vídeos caseiros. Era um homem bastante afetuoso. Ele nos adorava e passava muito tempo conosco. Então, tenho boas lembranças dele” contou Eve ao programa Outlook, da BBC.
Ela sentia falta de uma figura paterna em sua vida, e, um belo dia, descobriu que Doug não era seu pai biológico.
“Minha mãe era enfermeira na escola. Eu tinha o hábito de ler os e-mails dela para descobrir alguma fofoca. E descobri uma troca de mensagens dela com uma empresa chamada California Cryobank”, contou Eve.
“Na hora eu pensei que ela estava ajudando meu avô, que era criador de gado, com algum tipo de programa de reprodução. Cliquei num e-mail em que estava escrita minha data de aniversário. Achei estranho. Foi aí que descobri que o California Cryobank era um banco de esperma, e que eu fui gerada via inseminação artificial com o esperma de um doador anônimo.”
“Fiquei chocada, bem confusa. Sempre achei que havia segredos na nossa família, só não sabia que o segredo era eu! E digo isso porque Doug e minha mãe tiveram uma filha biológica 14 meses mais nova que eu, e ela não se parece nada comigo. Eu era uma criança loira, de olhos azuis e pele muito clara. Minha irmã mais nova tem essa linda tez morena, pele, cabelo castanho escuro, olhos castanhos escuros. Nossos interesses também eram diferentes, éramos polos opostos. E, então, eu meio que já desconfiava que havia algo ali, mas não sabia o que.”
Eve confrontou a mãe com a descoberta. Margo disse que ela e o marido achavam simplesmente que Eve não precisava saber da verdade, porque eles a viam como filha biológica e ponto.
Mas que ela, por ser enfermeira, começou a mudar de opinião. Margo tinha percebido o quanto o conhecimento sobre o DNA de uma pessoa era importante para o conhecimento sobre a saúde dessa pessoa. A irmã mais nova de Eve, por exemplo, tinha que fazer electrocardiograma todo ano por causa da doença cardíaca do pai.
Eve passou a se animar com a chance de voltar a ter um pai, e resolveu ir atrás do doador anônimo.
“Nos registros médicos da clínica de fertilidade, o doador era identificado como doador 106. Escrevi então, com muito cuidado, uma carta, e pedi que o California Cryobank passasse a carta para ele assim que houvesse uma atualização dos registros médicos desse doador. Um ano depois houve um contato e eles passaram a carta para ele. Pouco depois ele me respondeu. Começamos a nos comunicar por e-mail e depois pelo telefone. Eu estava na faculdade em Austin, no Texas, nessa época. E um dia, ele pegou um avião e veio me encontrar.”
E assim, Steve Scholl, entrou na vida de Eve.
“Começamos esse lindo relacionamento entre pai e filha. Ele é afetuoso, gentil e amigável e estava genuinamente interessado em mim. Foi maravilhoso. Parecia uma história de conto de fadas, deu tudo tão certo. Não era como outras histórias horríveis que eu ouvi. Eu tive sorte. Eu tinha um pai biológico que realmente queria me conhecer.”
Steve Scholl vivia num outro Estado e tinha sua própria família. Era casado e tinha filhos jovens. A esposa de Steve no começo não gostou da ideia de uma estranha bater na porta de casa da família dizendo ser filha de seu marido. Mas com o passar do tempo, ela aceitou a situação. E ambos, ela e Steve, foram ao casamento de Eve. Aliás, foi Steve que conduziu o casamento da filha.
“Steve tinha acabado de ser ordenado para realizar o casamento de um de seus amigos”, contou Eve. “Então pareceu muito apropriado naquele momento que ele me casasse. Foi um momento muito doce para, sabe, juntar nossas histórias. E todo mundo chorou.”
Um ano depois de se casar, Eve teve um filho, Hutton, que começou, cedo, a ter problemas de saúde, e os médicos não conseguiam identificar a causa desses problemas.
Quando tinha três anos, foi feito um perfil genético do garoto e descobriu-se que ele sofria de doença celíaca, uma doença autoimune causada normalmente pelo consumo de glúten. O distúrbio é hereditário e seu gene foi detectado na mãe do menino, Eve.
“Me disseram que a doença não tinha se desenvolvido no meu caso, mas que o distúrbio poderia aparecer a qualquer momento. O que foi estranho é que ninguém na minha família ou na família de Steve apresentava qualquer tipo de doença autoimune.”
Eve também fez o perfil genético de saúde e ancestralidade em uma empresa bastante popular nos Estados Unidos, que faz uma espécie de árvore genealógica do cliente a partir de seu DNA – e identifica uma série de parentes biológicos e seus graus de parentesco.
Os resultados deixaram Eve perplexa.
“Eu tinha um monte de parentes próximos. Vários primos de primeiro grau, a maioria deles bem mais velhos do que eu. Isso foi bizarro, porque minha mãe tem dois irmãos e eles não têm nenhum filho biológico. E pelo que sabia de Steve, ele também tinha dois irmãos e eles não tinham filhos biológicos. De onde vieram então esses primos e meio-irmãos?”
“Falei com esse primeiro meio-irmão. Ele é de Nacogdoches, cidade que fica a 50 quilômetros da minha cidade natal. E na conversa, ele me diz que conhece nosso pai biológico. Que seria o Dr. Kim McMorries, o médico de minha mãe e também da mãe dele. E eu pensei, ah esse meio-irmão não entendeu como funciona a inseminação artificial. Não entendeu que McMorries era o médico que fez a inseminação na clinica de fertilidade e que o pai biológico era um doador anônimo.”
“O terceiro cara que eu contactei era, segundo o site de ancestralidade, um primo de primeiro grau. E que se ele tivesse um tio, esse tio teria de ser meu pai biológico. Ele disse: Meu pai só tem um irmão. E ele é de Nacogdoches, perto de sua região, onde você cresceu. E o nome dele é Kim McMorries.”
‘Minha mãe ficou em estado de choque, tremendo…’
“Meu mundo caiu. Os resultados de DNA só significavam uma coisa: que o médico que fez o tratamento de fertilidade da minha mãe usou seu próprio esperma para fazer a inseminação – em vez de usar o esperma do doador que meus pais selecionaram.”
“Ao fim da ligação com meu agora primo, subi para contar para minha mãe, que estava de férias conosco. ‘Steve não é meu pai’, eu disse. ‘É Kim McMorries, o médico’. Eles estavam assistindo a um filme e ela disse: O quê? E eu comecei a contar. Ela ficou em estado de choque, tremendo, a ponto de meu marido perguntar se não deveríamos chamar uma ambulância.”
Eve esperou dois meses para contar a Steve Scholl, o homem que por 14 anos ela acreditou ser seu pai. Ela esperou Steve receber os resultados de teste de DNA que ele tinha feito na mesma empresa em que Eve tinha feito o seu teste.
“Liguei para ele e foi devastador. Nós dois apenas choramos ao telefone. E no final da conversa, ele disse: ‘Isso muda algumas coisas, mas não muda tudo. Eu não vou embora. Você ainda é minha filha. E vamos superar isso juntos’.
Eve também ficou chocada com outra descoberta: de que o que o médico fez, inseminar sua paciente com seu esperma sem o consentimento desta não era crime no Texas. Mas ela resolveu confrontar Kim McMorries, o médico.
“Escrevi uma carta para ele, apenas contando o que descobri e perguntando como isso pode ter acontecido. Ele respondeu primeiro dizendo que não lembrava do caso, que não tinha mais os registros da fertilização de minha mãe – já que era obrigado por lei a guardá-los por apenas sete anos. E disse que muitas vezes, os espermatozoides enviados pelo California Cryobank não eram bons, e que ele então usava amostras do próprio esperma, que tinha recolhido havia 13 ou 14 anos, nos tempos em que era doador.”
“Ele defendeu isso dizendo que o mais importante era conseguir a fecundação. Que ele estava fazendo o que minha mãe queria, que era engravidar. Mas a questão é que ele podia ter sido transparente. Ele poderia ter dito ‘o esperma do doador não está funcionando, posso usar o meu’? E a razão pela qual ele não fez isso é porque ela teria dito não.”
“Ele disse que usou frascos de esperma de anos anteriores. Mas em uma anotação de registros médicos de uma meia-irmã minha, que era alguns meses mais velha que eu, o próprio Dr. McMorries diz que usou uma amostra fresca. Ou seja, nós acreditamos firmemente que ele colheu a amostra dele na própria clínica e em seguida a depositou na minha mãe.”
“Essa conduta introduz graves conflitos de interesse no relacionamento médico-paciente. Ao fazer a inseminação ilícita ele está explorando o fato de minha mãe não saber nada do que estava acontecendo. E meus pais tinham escolhido um doador que se parecesse com meu pai, queriam que o filho ou filha se parecesse com ele. O médico impediu isso. Ele violou a obrigação, o dever de divulgar todas as informações médicas relevantes. Ele roubou dos meus pais a autonomia de tomada de decisão.”
Na troca de cartas, o médico acabou pedindo desculpas pela dor que tinha causado a Eve e sua família. Ele nunca foi punido ou teve sua licença ameaçada, justamente porque o que tinha feito não era visto como crime no Estado, o Texas.
Mas Eve Wiley resolveu ir a público com sua história e lançou uma campanha para que a legislação do Estado passasse a proibir que médicos usassem seu esperma para inseminar uma paciente sem o consentimento expresso dela.
“Eu não tinha a menor ideia de como fazer isso. Mas em Austin, capital do Estado, conheci um lobista que me ajudou e explicou tudo. Eu ia com ele para a Assembleia, falar com deputados. Durante meses, eu ia lá, uma vez por semana, e passava o dia contando minha história. Muitos ficavam emocionados. Muitos deles, os homens mais velhos, não entendiam realmente como a história funcionava. Eu tinha que explicar o básico.”
A campanha deu certo. A lei foi mudada no Texas, na Flórida e no Colorado, onde a inseminação com sêmen de um doador sem consentimento passa a ser vista como agressão sexual.
Casos como o de Eve estão longe de ser os únicos. Um médico especialista em fertilidade na cidade de Indianápolis, Donald Cline, inseminou pelo menos três dúzias de mulheres com seu esperma nos anos 1970 e 1980 – e teve mais de 60 filhos.
O médico holandês Jan Karbaat teve pelo menos 56 filhos com mulheres tratadas em sua clínica nos arredores de Rotterdã.
A própria Eve diz ter pelo menos 13 meio-irmãos e irmãs filhos do médico. E o pai biológico de todos eles, longe de ser unanimemente condenado por sua conduta, é visto por muitas pessoas que acompanharam a história de Eve Wiley como uma espécie de herói.
“Recebi muitas mensagens de ódio através do Facebook e Instagram. Foi muito difícil. Muita gente pensa que eu estava arruinando um homem bom, que ele estava fazendo a obra do Senhor. Acho que ouvi isso umas 100 vezes. Que eu era uma pirralha mal agradecida. Ou pessoas dizendo ‘você é bonita e inteligente e deveria estar grata por estar viva’. Que ‘se ele não tivesse feito isso, eu não estaria aqui’.”
Eve Wiley diz “reconhecer e honrar” sua identidade genética, mas que sua descoberta a aproximou ainda mais de Steve.
“Sempre houve uma consistência na nossa relação e a gente continua mantendo ela. Hoje damos risada do que aconteceu, mas sem dúvida que tivemos que conversar, a situação era estranha. Mas todas as decisões que tomamos depois disso foram decisões de uma família.”
Formada em psicologia e neurociência comportamental, com mestrado em ciências de aconselhamento parental, Eve Wiley hoje mora em Dallas, onde trabalha como terapeuta especializada em ajudar pais a lidar com comportamentos como ansiedade, depressão e dificuldades de aprendizado em crianças.