- Author, Leandro Prazeres e Mariana Sanches
- Role, Da BBC News Brasil em Brasília e em Washington
Países que mantêm relações diplomáticas há décadas, Brasil e Israel vivenciaram, nas últimas semanas, uma série de episódios que, segundo diplomatas, criaram tensão entre os governos do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e do presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Como resposta, Israel lançou uma campanha militar na Faixa de Gaza que, segundo o Ministério da Saúde da região, controlado pelo Hamas, já matou mais de 10 mil pessoas.
O governo brasileiro emitiu notas condenando os ataques praticados pelo Hamas, por um lado, e, por outro, tentou viabilizar uma resolução no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) que previa um cessar-fogo.
A resolução, no entanto, não foi aprovada.
Em meio à possibilidade de escalada no conflito, pelo menos três eventos vêm criando tensão entre os dois países: o encontro entre o embaixador do país no Brasil, Daniel Zonshine, com parlamentares de oposição e com o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL); a demora na liberação pelo governo israelense de brasileiros e seus familiares que tentam deixar a Faixa de Gaza para fugir do conflito; e as declarações de autoridades israelenses sobre uma operação da Polícia Federal que prendeu dois brasileiros suspeitos de fazerem parte do Hezbollah e planejarem uma série de ataques no Brasil.
Diplomatas ouvidos pela BBC News Brasil admitem que esses episódios afetaram as relações entre os dois países, mas descartam, pelo menos por ora, a adoção de medidas consideradas drásticas do ponto de vista diplomático contra o governo israelense.
Confira abaixo os detalhes dos episódios que vem abalando as relações entre Brasil e Israel.
Encontro entre Bolsonaro e embaixador de Israel
Demora na liberação de brasileiros
Um dos episódios que, aparentemente, gerou mais estresse nas relações entre os dois países foi o encontro entre o embaixador de Israel, Daniel Zonshine, com parlamentares de oposição e com o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), na quarta-feira (8/11), no Congresso Nacional, em Brasília.
Ao longo do encontro, os parlamentares usaram o evento para tecer críticas ao governo Lula. Bolsonaro, por sua vez, ficou conhecido nos últimos anos por ser um apoiador do Estado de Israel. Desde o início do conflito, ele fez críticas à atuação do governo Lula em relação à crise na Faixa de Gaza e associou o Hamas a Lula citando uma nota divulgada pelo grupo palestino parabenizando a vitória do petista nas eleições de 2022.
Em entrevista ao portal UOL, Zonshine disse, no entanto, que a ideia original do encontro não era transformá-lo em um evento político, mas mostrar imagens referentes aos ataques praticados pelo Hamas a alvos israelenses no dia 7 de outubro.
“A ideia do evento era demonstrar para representantes do governo brasileiro o que aconteceu no dia 7 de outubro. Convidamos parlamentares de vários partidos, incluindo o PT, para participar e para ver. Não era intenção fazer isso como um evento político”, disse o embaixador ao UOL.
Em nota divulgada em suas redes sociais, a Embaixada de Israel diz que “a presença do ex-presidente não foi coordenada pela Embaixada de Israel e não era de conhecimento antes do evento, ocorrendo de forma fortuita”.
A versão foi a mesma dada pelo advogado e ex-secretário de comunicação de Jair Bolsonaro, Fabio Wajngarten. Em seu perfil no X (antigo Twitter), o advogado disse que o encontro entre os dois aconteceu “de surpresa”.
Um diplomata ouvido pela BBC News Brasil em caráter reservado, no entanto, classificou o episódio como “grave” e disse que, na avaliação do governo, Zonshine já vinha “inviabilizando” sua posição como representante do governo isralense no Brasil com atitudes como essa.
A presidente nacional do PT, deputada federal Gleisi Hoffmann (PT) criticou a postura do embaixador e classificou o encontro com Bolsonaro como uma intromissão indevida na política brasileira.
“Mais uma vez o embaixador de Israel no Brasil intrometeu-se indevidamente na política interna de nosso país, num ato público com o inelegível Jair Bolsonaro, realizado em pleno Congresso Nacional”, disse a deputada em seu perfil no X.
No início do mês, Zonshine já havia se reunido com parlamentares do Grupo Parlamentar de Amizade Brasil-Israel, composto por diversos deputados federais de oposição que criticaram a resposta do Brasil ao conflito na Faixa de Gaza como o filho do ex-presidente Jair Bolsonaro, Eduardo Bolsonaro (PL-SP).
Fotos do encontro chegaram a ser divulgadas no perfil da Embaixada de Israel no X, antigo Twitter.
Também em outubro, o embaixador criticou uma resolução do PT sobre o conflito que disse que o governo de Israel realizava um “genocídio” contra a população da Faixa de Gaza. Em entrevista ao portal Poder 360, Zonshine disse que o partido havia perdido a “noção de humanidade”.
Na ocasião, em meio a esses episódios, o embaixador israelense foi convidado para uma reunião no Itamaraty, o que na linguagem diplomática significa um estremecimento nas relações entre os países.
A BBC News Brasil questionou a Embaixada de Israel sobre as motivações do encontro entre Bolsonaro e Daniel Zonshine, mas nenhuma resposta foi enviada até o fechamento desta reportagem.
Em meio às críticas, um diplomata ouvido pela BBC News Brasil em caráter reservado disse nesta semana que a orientação no governo brasileiro é evitar “ruídos” nas relações entre os dois países e que o foco, agora, seria garantir a repatriação dos brasileiros e seus familiares que aguardavam, na Faixa de Gaza, autorização para irem ao Egito.
Segundo ele, o Brasil não tomaria nenhuma medida contra o embaixador antes de esse assunto estar resolvido.
A situação dos brasileiros na Faixa de Gaza, aliás, vinha sendo outro ponto de tensão nas relações entre os dois países.
Um outro ponto indicado por fontes diplomáticas ouvidas pela BBC News Brasil como complementar ao tensionamento das relações entre Brasil e Israel foi a demora do governo de Tel Aviv para liberar o grupo de 34 brasileiros e seus familiares que aguardam uma autorização do governo israelense para deixar a Faixa de Gaza pela fronteira com o Egito.
Um diplomata ouvido pela BBC News Brasil disse que o país não tomaria nenhuma medida diplomática mais drástica contra Israel como convocar seu embaixador o país enquanto o grupo ainda não tiver retornado ao Brasil.
Segundo ele, o Brasil não “brigaria com o dono da fila”, em menção à fila de palestinos querendo deixar a Faixa de Gaza.
A evacuação de palestinos em direção ao Egito pela cidade palestina de Rafah foi uma das consequências dos intensos bombardeios israelenses à Faixa de Gaza. Milhares de pessoas se deslocaram do norte da região para o Sul com a expectativa de deixar a área em direção ao Egito.
A fronteira, no entanto, vem sendo mantida fechada pelas autoridades de Israel e Egito e a saída da Faixa de Gaza só vem ocorrendo por meio de listas elaboradas pelo governo israelense.
A primeira liberação ocorreu no dia 1º de novembro. Havia a expectativa de que o grupo de brasileiros seria liberado até quarta-feira (8/11), mas isso não aconteceu.
Na quinta-feira, o Itamaraty divulgou um comunicado afirmando que o ministro das Relações Exteriores, Eli Cohen, teria garantido ao ministro das Relações Exteriores do Brasil, Mauro Vieira, que os brasileiros seriam liberados a atravessar a fronteira nesta sexta-feira (9/11).
Até o momento da publicação desta reportagem, ainda não tinha sido confirmado se os brasileiros já atravessaram a fronteira.
No Brasil, começaram especulações sobre uma possível retaliação de Israel ao Brasil por conta de sua atuação na presidência do Conselho de Segurança da ONU durante o mês de outubro, quando o país tentou aprovar uma resolução prevendo um cessar-fogo. A proposta brasileira foi rejeitada com o veto dos Estados Unidos, principal aliado de Israel.
Outro motivo para a suposta retaliação seria o fato de o Brasil não classificar o Hamas como uma entidade terrorista, ao contrário do que fazem países como os Estados Unidos.
Oficialmente, o Itamaraty afirma que o Brasil segue a classificação feita pela ONU, que apesar de condenar os ataques praticados pelo Hamas, não classifica o grupo como terrorista.
Em comunicado divulgado pela Embaixada de Israel na quinta-feira, o país nega ter imposto dificuldades para liberar os brasileiros.
“Se afirma que o governo israelense jamais criou obstáculos ou preteriu a saída dos brasileiros de Gaza. Brasil e Israel têm laços fortes e fraternos desde a fundação do Estado de Israel e nosso esforço é para fortalecer cada vez mais essa amizade”, disse um trecho do comunicado.
Na nota divulgada pelo Itamaraty na quinta-feira, a justificativa dada pelo governo de Israel para a demora na liberação dos brasileiros seria os “fechamentos inesperados na fronteira”.
Durante uma reunião convocada pelo governo francês, em Paris, para garantir ajuda humanitária à população da Faixa de Gaza, Celso Amorim usou o termo genocídio para se referir às mortes de crianças causadas pelas ações militares israeleneses na região.
“A morte de milhares de crianças é chocante. A palavra genocídio inevitavelmente vem à mente”, disse Amorim durante um discurso.
De acordo com o Ministério da Saúde da Faixa de Gaza, administrado pelo Hamas, pelo menos 10,5 mil pessoas morreram desde o início das ações militares israelenses na região. Desse total, aproximadamente 4,3 mil seriam crianças.
Nota do Mossad e a resposta de Flávio Dino
No mesmo dia em que Bolsonaro e o embaixador de Israel se encontravam, um outro episódio ajudava a complicar as relações entre Brasil e Israel: a Operação Trapiche, da Polícia Federal.
A PF prendeu dois suspeitos de terem ligação com o grupo islâmico Hezbollah no Brasil que teriam planejado uma série de ataques a alvos ligados à comunidade judaica brasileira.
A operação contou com o apoio de serviços de inteligência dos Estados Unidos e do Mossad, o serviço de inteligência israelense. Ao longo do dia, o Mossad divulgou uma nota parabenizando a PF brasileira, mas seu conteúdo gerou desconforto no governo brasileiro.
Em nota atribuída ao Mossad e enviada à imprensa pelo gabinete do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, os israelenses dizem que a ação “frustrou um ataque terrorista no Brasil, planejado pela organização terrorista Hezbollah, dirigida e financiada pelo regime iraniano”.
No texto, o Mossad “agradece” a Polícia Federal e, sem dar nomes, cita que outros agentes de segurança internacional também se envolveram na investigação que levaram às prisões.
A BBC News Brasil apurou que agentes americanos do Federal Bureau of Investigation (FBI) também tomaram parte na investigação. O Departamento de Estado, no entanto, afirmou à BBC News Brasil via porta-voz que “sua política é não comentar investigações brasileiras em andamento” e que, para mais informações, a Polícia Federal deveria ser consultada.
Em contraste, a nota do Mossad diz ainda que no Brasil, a “célula terrorista” teria como alvos instituições judaicas e israelenses. Ainda sobre o assunto, o embaixador israelense Daniel Zonshine disse ao jornal O Globo que “se (integrantes do Hezbollah) escolheram o Brasil, é porque tem gente que os ajuda (no país)”.
Sob intensa pressão doméstica por não ter antecipado os ataques do grupo palestino Hamas que, em 7 de outubro, mataram 1,4 mil pessoas em território israelense, os serviços de inteligência do país já vieram a público se desculpar junto à população. O próprio governo Netanyahu enfrenta forte pressão da opinião pública pelas falhas de segurança.
As manifestações dos israelenses sobre a operação da PF geraram extensa cobertura do caso pela imprensa do país. E causaram mal-estar nas autoridades brasileiras.
Uma fonte da Polícia Federal com quem a BBC News Brasil falou em caráter reservado disse que a instituição e membros do governo não gostaram do que chamaram de instrumentalização política da operação.
A interpretação, segundo essa fonte, é de que o governo israelense, que enfrenta críticas internas intensas desde os ataques do Hamas, teria usado a operação para desviar as atenções e dar a impressão de que o Brasil seria um aliado de Israel no combate ao grupo libanês.
A BBC News Brasil questionou a Embaixada de Israel sobre as alegações de que a operação da PF estaria sendo politicamente instrumentalizada por autoridades israelenses, mas até o fechamento desta reportagem, nenhuma resposta foi enviada.
Em nota, sem citar o Mossad, a Polícia Federal “repudiou” comentários feitos por autoridades estrangeiras no caso da Operação Trapiche.
“A PF se utiliza da cooperação internacional como instrumento para combater de maneira eficaz a criminalidade organizada transnacional e para preservar a segurança interna. Para isso, todas as suas ações são técnicas, balizadas na Constituição Federal e nas leis brasileiras. Não cabe à PF analisar temas de política externa. Contudo, manifestações dessa natureza violam as boas práticas da cooperação internacional e podem trazer prejuízos a futuras ações nesse sentido”, diz a nota da instituição.
Ao mencionar o Irã em sua nota, rival histórico de Israel no Oriente Médio, o Mossad causou uma saia justa diplomática ao Brasil.
O Itamaraty sequer havia sido avisado de antemão da Operação Trapiche, tratada estritamente como uma ação policial, e não diplomática.
A diplomacia brasileira, por sua vez, viu a nota de Israel como pressão indevida.
Uma fonte da cúpula do Itamaraty afirmou à BBC News Brasil que houve a sensação de que “foram colocados os pingos nos is” quando o ministro da Justiça, Flávio Dino, veio a público, na manhã de quinta-feira, por meio da rede social X, para dizer que “apreciamos a cooperação internacional cabível, mas repelimos que qualquer autoridade estrangeira cogite dirigir os órgãos policiais brasileiros, ou usar investigações que nos cabem para fins de propaganda de seus interesses políticos”.
Dino reafirmou que as investigações estão em andamento e que nenhuma conclusão pode ainda ser tomada. Segundo o ministro, as provas do caso serão exclusivamente avaliadas pelas autoridades brasileiras para decidir como proceder em relação ao caso junto à Justiça brasileira.
A Polícia Federal trata o assunto com sigilo, sem divulgar sequer os nomes dos suspeitos presos e procurados.